Sociedade Contemporânea x Famílias

Sociedade contemporânea x famílias

Sociedade contemporânea x famílias…Definir o termo “família” em nossa sociedade contemporânea é uma tarefa complexa. Nesse sentido, Silva (2020, p.31) afirma que a contextualização da família permeia diversos conceitos e áreas do conhecimento, como o direito, a sociologia e a antropologia, o que torna difícil uma definição clara e unificada. Nem mesmo o Código Civil oferece uma definição precisa. Cada disciplina contribui com uma compreensão particular, ressaltando a diversidade e a complexidade desse grupo social.[1]

O sociólogo Pierre Bourdieu, em seu livro “Razões Práticas: sobre a teoria da ação”, descreve a família como um conjunto de indivíduos aparentados, ligados por aliança, casamento, filiação ou adoção, que vivem sob o mesmo teto, ou seja, a coabitação. Segallen complementa essa visão ao destacar que o termo “família” é polissêmico, referindo-se tanto aos laços de sangue e aliança quanto à instituição que regula esses laços.[2] Sendo assim, essas definições ajudam a elucidar que, ao longo da história, a família sempre foi moldada pelas circunstâncias sociais e culturais, e, na sociedade contemporânea, isso não é diferente.

Definitivamente, vivemos em um tempo em que novos mosaicos familiares surgem a cada momento, refletindo as transformações em todos os campos da sociedade. Os papéis familiares, antes bem definidos, agora se apresentam de maneira difusa e, muitas vezes, confusa, como resultado das diversas configurações familiares emergentes. A noção tradicional de família nuclear, composta por pai, mãe e filhos, deu lugar a uma pluralidade de modelos, como famílias monoparentais, famílias reconstituídas, famílias homoafetivas, entre outras. Essa diversidade reflete a complexidade das relações humanas e os novos arranjos possíveis na sociedade atual. Como bem afirma Durkheim, “as circunstâncias são outras”, e é essencial que reconheçamos essas mudanças para compreendermos a família contemporânea.

A partir de minha experiência no campo educacional, especialmente na escola, percebo que as famílias, diante de tantas mudanças e responsabilidades, e com o avanço da tecnologia, têm se distanciado de um de seus papéis fundamentais: a educação dos filhos. O renomado psiquiatra Içami Tiba, em sua obra “Quem ama, educa“, aborda exatamente essa questão, destacando que o principal papel da família é educar. Entretanto, o que observamos nas últimas décadas é uma transferência dessa responsabilidade para a escola, que tem assumido funções que antes eram desempenhadas exclusivamente no ambiente familiar.

Educação não envolve apenas a instrução formal, mas também a transmissão de valores essenciais para a convivência harmoniosa e equilibrada em sociedade. A família é o primeiro grupo social da criança, onde seu caráter e moralidade começam a ser moldados desde os primeiros anos. No entanto, no contexto atual, observa-se uma confusão crescente entre o papel da escola e o da família na formação ética e moral de crianças e jovens.

A tecnologia, embora tenha trazido benefícios, também tem gerado distanciamento familiar, criando relações que frequentemente dificultam o diálogo e a troca de experiências essenciais. A comunicação, antes mais direta e constante, agora é mediada por dispositivos, enfraquecendo laços familiares e comprometendo a transmissão de valores fundamentais ao desenvolvimento humano. Consequentemente, crianças e adolescentes estão cada vez mais imersos no mundo digital e menos conectados aos pais no aspecto afetivo e educativo.

Apesar das dificuldades, é fundamental não perdermos de vista a essência da família. Bourdieu nos lembra que “a família é o lugar da confiança (trusting) e da doação (giving)”[3], um espaço onde os indivíduos deveriam encontrar apoio incondicional e amor, independentemente das circunstâncias. É onde os valores mais profundos são transmitidos, como o respeito, a solidariedade e a empatia, que são essenciais para a vida em sociedade.

Por mais que as configurações familiares tenham mudado, a família ainda é o alicerce sobre o qual construímos nossa identidade e aprendemos a nos relacionar com o mundo. Mesmo com todas as imperfeições inerentes a qualquer grupo humano, a família é, muitas vezes, o lugar para onde voltamos nos momentos mais difíceis. É o espaço onde encontramos compreensão e suporte, mesmo que nem sempre esteja livre de conflitos e desafios. É bom sempre lembrarmos que toda família tem o seu lado “doce”, como também, o seu lado “amargo”.

A família, em sua essência, é uma instituição que atravessa séculos e se adapta às mudanças sociais, culturais e econômicas de cada época. Na sociedade contemporânea, essa transformação é ainda mais acelerada, fruto das revoluções tecnológicas, dos novos arranjos sociais e das múltiplas formas de convivência. Se por um lado, as novas configurações familiares trouxeram maior flexibilidade e aceitação das diferenças, por outro, também criaram desafios inéditos, principalmente no que diz respeito à educação dos filhos, à convivência e à transmissão de valores.

É preciso reconhecer que as mudanças que impactam a família contemporânea não surgem isoladas. As transformações familiares estão ligadas às mudanças no papel das mulheres, sua entrada no mercado de trabalho e a revisão das normas de gênero estabelecidas. Nas últimas décadas, o modelo tradicional, com o pai provedor e a mãe cuidando dos filhos, foi substituído por novas dinâmicas mais igualitárias. Atualmente, mulheres e homens chefiam famílias, compartilhando o cuidado e a educação dos filhos em arranjos que incluem pais biológicos ou configurações como famílias com dois pais ou duas mães.

Além disso, a própria noção de casamento e de aliança familiar foi desafiada. O aumento das separações e dos (re)casamentos, assim como o reconhecimento legal das uniões homoafetivas, ampliou o conceito de família, que deixou de ser uma estrutura rígida para abarcar diferentes formas de organização. Esses novos modelos são, de certa forma, um reflexo da liberdade individual e da busca por formas de convivência mais equitativas e baseadas em afeto.

Contudo, essas transformações também trouxeram desafios. A fluidez das relações e a necessidade de adaptação constante podem gerar incertezas, especialmente no que se refere à educação dos filhos. Como mencionei anteriormente, o avanço tecnológico tem contribuído para um distanciamento entre pais e filhos. As crianças e adolescentes, cada vez mais imersos no mundo digital, se desconectam das interações presenciais que antes eram centrais nas relações familiares. O uso de dispositivos tecnológicos e redes sociais, se por um lado facilita a comunicação e o acesso à informação, por outro, cria barreiras emocionais, impactando diretamente o vínculo entre os membros da família.

A educação, que deveria ser um processo conjunto entre família e escola, muitas vezes acaba sendo delegada exclusivamente à instituição escolar, sobrecarregando os professores com responsabilidades que vão além do ensino formal. As famílias deveriam começar a transmitir valores como respeito, empatia, responsabilidade e ética, mas acabam transferindo essa responsabilidade para o ambiente escolar. Na escola, muitas vezes, o professor assume sozinho a tarefa de mediar conflitos e ensinar comportamentos adequados para a convivência social. Isso cria um desequilíbrio e contribui para a fragilidade das relações familiares.

Outro aspecto importante a ser considerado é o impacto da globalização e da cultura de consumo na família contemporânea. O modelo de vida acelerado, voltado para o consumo e para a valorização do sucesso material, muitas vezes esvazia o tempo de convivência familiar. Em uma sociedade que valoriza o “ter” em detrimento do “ser”, os momentos de diálogo e troca de experiências entre os membros da família se tornam escassos. A ausência de tempo e a pressão por cumprir metas externas, sejam elas profissionais ou pessoais, acabam sobrecarregando os pais, que muitas vezes se veem impotentes diante das exigências do cotidiano e da educação dos filhos.

Diante desse cenário, é fundamental repensar o papel da família na sociedade contemporânea. Precisamos retomar a importância do diálogo, do afeto e da presença. Educar não é apenas fornecer condições materiais ou instrução formal, mas também oferecer um ambiente seguro e amoroso, onde os filhos possam aprender a respeitar limites, a lidar com frustrações e a desenvolver valores éticos sólidos.

A sociedade contemporânea, com todas as suas complexidades, exige que a família se reorganize e se fortaleça como um espaço de cuidado e formação. É preciso que os pais assumam seu papel de educadores no sentido mais amplo, compreendendo que sua função vai além da provisão material. Eles são os principais responsáveis por moldar o caráter e as atitudes dos filhos, preparando-os para enfrentar os desafios de uma sociedade plural, dinâmica e, por vezes, conflituosa.

A família, independentemente de sua configuração, continua sendo o núcleo central de nossa formação social e afetiva. As circunstâncias mudaram, como destaca Durkheim, mas a família deve preservar sua essência como espaço de confiança, apoio mútuo e transmissão de valores. O grande desafio atual é equilibrar as demandas externas e o avanço tecnológico, mantendo laços familiares fortes que sustentem o desenvolvimento saudável das próximas gerações.

Em suma, a família contemporânea é um reflexo das transformações sociais por que passa a nossa sociedade. Ela não é melhor ou pior do que a família de outrora, mas sim diferente, porque as circunstâncias mudaram. Contudo, o que permanece é a sua importância como espaço de afeto, educação e formação de valores. É imprescindível que, como sociedade, repensemos o papel da família na educação dos filhos e busquemos fortalecer os laços que nos unem, para que possamos enfrentar os desafios do presente e construir um futuro mais harmonioso e solidário.

 

A família de hoje não é mais nem menos perfeita do que aquela de ontem: ela é outra, porque as circunstâncias são outras. (Émile Durkheim)

 

Profa Dra Miriam Abreu

Autora

Referências

[1] SILVA, M.F.A da. Famílias e escolas militares, 1 ed. Curitiba: Appris, 2020, p. 31.

[2] Ibidem, p.31

[3] BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. 9 ed. Campinas: Papirus, 2008, p. 126.

1 comentário em “Sociedade Contemporânea x Famílias”

  1. Pingback: A Família x Novas Tecnologias -

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima